segunda-feira, 26 de setembro de 2011

* Era a hora. Mas de renascer.

Morte ~ Medieval Scapini Tarot ~ Fonte: Albideuter.de

De repente, acordei de sobressalto. Havia sido tão intensa a percepção daquela carta na mesa, na noite anterior, aquele Ás que pedia um recomeço, reacender a chama, que acabei por dormir sobre elas. A janela aberta durante a noite toda teve sua vantagem. O cheiro do velho havia desaparecido e permanecido somente o aroma de incenso.

Era madrugada ainda, tingida pelas primeiras cores do amanhecer no horizonte. Olhei as montanhas ao fundo, através da janela, lá longe. E vi que em minutos o sol se levantaria. Tudo estava recomeçando, como se o que acontecera, até então, houvesse morrido. Sem levantar da cadeira aonde adormeci, mais do que depressa retirei uma carta do leque espalhado. E o tarô não mentiu: Ela, a funesta inominada, saiu daquele maço.

Morte. Na casa do passado. "Eu vim buscar aquilo que é meu", parecia dizer, erguendo sua foice com mãos esqueléticas. "E não vai sobrar nada que não tenha que sobrar". Não tive como não me assombrar. Eu sabia muito bem o que ela queria. As memórias. Aquelas cabeças cortadas sob seus pés, reis e pessoas comuns que pediram por sua misericórdia, mas não tiveram. A foice havia cantado num golpe só. Um golpe rápido e fatal. Mas nem por isso indolor.

O contexto estava claro. Era a memória de tantos anseios não realizados, tantas vontades diferentes, onde minha própria cabeça teceu ideias de grandeza ou ideias vulgares. Vi meu rosto refletido em cada uma daquelas cabeças espalhadas, como se fossem flores que enfeitam um jardim, para a Morte. Todos aqueles anseios foi a razão pela qual envelheci. A cabeça não mais suportava tanto peso das memórias. E então entendi o porquê das minhas costas doerem.

À Morte, o que é da Morte. O que lhe pertence. Mas seriam somente as ideias, que ela queria? Então abri a carta do presente. Concentrei, retirei do maço. E surpreso fiquei com a confirmação, do agora, desse exato momento, ali. Ás de Espadas. As ideias coroadas. Objetivos, propósitos, certezas e direcionamentos. A Morte veio buscar o pacote completo. Não me deixaria ficar com nada. Aquele Ás, ali, cantou em meus ouvidos como a foice cantava na carta anterior. E não me restaria mais nada, soube disso ali. Deveria entregar tudo. Por um momento, vislumbrei. E agora, futuro incerto, sem nada daquilo que eu já havia há tanto definido em mim? Fechei os olhos, pois temi a dor. Temi que persistisse a dor e o luto.

Ás de Espadas ~ Crowley-Harris Thoth Tarot ~ Fonte: Albideuter.de

Olhava para o Ás. Se deveria entregar tudo, o que restaria de mim? Afinal, foram as ideias que adquiri durante o tempo que delinearam quem eu era. Defini a mim mesmo pelas atitudes que tomei. A forma como conduzi tudo. Sempre tentando fazer o meu melhor, em cada momento. Mesmo que por muitas vezes nada havia dado certo. Mas a certeza de quem eu era estava clara. Clara como aquele Ás de Espadas. Será que deveria brigar com a Morte e levar comigo o que eu tinha certeza que me pertencia? Meu eu, minha referência? Minhas mãos começaram a tremer. Eu devia ver o futuro. O futuro que tanto fugi em tempos passados. Mas que esclareceria o rumo que estava se expressando naquelas cartas.

Respirei fundo. Nova concentração. Retirei a carta do maço. Estendi sobre a mesa, sem a abrir. Precisava respirar um pouco mais. Inspira, expira. Coragem, onde está você? "Abra-a, Adash" - ouvia a mente gritar - "Abra-a"! Inspira, expira. E nada da coragem chegar. Fazia uma enorme força para descobrí-la em mim. Precisava ousar abrir aquela última carta. Levantei a mão e fui guiando-a, trêmula, até a carta. Pousei minha mão sobre ela. Ergui, delicadamente, sem virá-la. Mas a soltei. Não conseguia. O momento estava forte demais. Frustrei-me por não conseguir ser livre o suficiente e olhar a resposta.

Se a Morte quer o que pertence a ela, então a vida deve saber o que faz. Pois ali, sentado, eu senti. Um calor delicado tocou meu rosto. E como ser abraçado pela vida e pela esperança após um longo inverno, após um luto infindável - ou uma morte em vida? - fui tocado pelos primeiros raios de sol, que estava se levantando no horizonte. Ele vinha aquecer minha face e tocar minha alma, após uma longa noite naquele velho estúdio que agora já se renovava.

Olhei para fora, um dia lindo estava surgindo. O ar matinal era incrível. Um alento que parecia curar todas as dores, aromático com o perfume das flores. Encorajador, convidativo e inspirador. Levantei-me, finalmente. Olhei pela janela, aquela visão magnífica da vida e do mundo. Tomei-me pelo impulso e corri, ouvindo finalmente o som do despertar. Um despertar que tanto queria sentir.

Peguei uma mochila. Coloquei dentro um caderno de sketches. Alguns lápis de cor, uma caixa de incenso, isqueiro, cigarros. E seria o maior traidor do mundo se deixasse elas ali. Reuni o tarô de volta em um maço, enrolei em seu pano acolhedor. Mas deixei de fora, sem abrir, aquela carta reveladora. Guardei-o na mochila, levando a carta retirada comigo no bolso do meu casaco, sem vê-la.

Saí porta do estúdio à fora. Respirei profundamente o ar perfumado, os raios de sol, a vida florescente e os pontinhos brincalhões, de prana, que faiscavam o azul do céu. À beira da escada, Aleph latiu. Meu cãozinho, abanando o rabo, parecia abençoar minha nova ideia. Então corri, desci até a estação, com um sorriso satisfeito. Paguei a passagem, entrei no trem. E o apito que me despertou, minutos atrás, soou de novo anunciando a partida. Uma viagem, curtinha, mas em busca de inspiração.

À mente, me veio J.G de Araújo Jorge. Eu sabia o que buscava. Eu sabia o que queria. Como o título do poema, "Um Novo Amor". Recitado, como em um sarau, os versos me tomaram por completo:

"é como se abrisses os olhos para a vida
naquele instante,
como se para trás nada tivesse havido...
Nasces com um novo amor! E viverás de novo
o mistério deslumbrante
do que há de acontecer, como se nunca tivesse
acontecido..."

E o trem partiu. Agora era o meu momento. Retirei aquela carta do bolso e a olhei, profundamente, compreendendo tudo. Não sem um sorriso no rosto. Não sem me ver, ali, estampado. Não sem encontrar o som no interno que preenchia todo o vazio. Lá estava ele. Profundo, inspirado, entregue ao que quer que pudesse acontecer. Lá estava ele e nós estávamos juntos. E só senti uma imensa gratidão - por tudo. Pois havia sido abençoado por sua presença, ali, em meu jogo. O espírito da primavera. Ninguém e nada, ou menos que O Louco!

O Louco ~ Tarot Classic ~ Gassmann - Fonte: Albideuter.de

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6 comentários:

Emanuel disse...

Lindo texto. Tredici, A(s de) Espada, Louco. Acaba... Encerra... Começa... Renova.
E vai.

Adash Van Teufel disse...

Obrigado, Emanuel!!

Renovando - e vamos! À Mystic Fair!

Abraço!

Katharina Dupont disse...

Já te disse mas não me canso de repetir que sua expressividade é consequencia direta da clareza da tua alma... e compartilhar isso conosco é que te faz tão especial!

Adash Van Teufel disse...

Katharina, sem palavras para o que você escreveu!

Eu não teria adquirido esta clareza sem amigos especiais na minha jornada, como vocês!

Obrigado, de coração!

Ana Carla Cavalheiro disse...

Meu irmão querido que a vida me deu de presente!nesse momento lendo seu texto,meus olhos encheram de lagrimas estas que caiam com grande emoção....senti e compreendi que devo ter esperanças..essa que esta por veses escondida dentro do meu ser...quanta delicadeza em expressar teus sentimentos...fiquei emocionada por ter o previlegio de ser tua irma!

Adash Van Teufel disse...

Ana,

A vida sempre renasce. Morte, no contexto do tarô, já não foi colocada no fim exatamente pra demonstrar isso. A natureza sempre se renova. Nunca devemos perder a esperança.

Privilégio? Acho que foi todo meu, isso sim!

Beijus!